12 fevereiro 2017

Tablete de alimento

Para evitar o desperdício de alimentos e de água, foi estipulada uma porção semanal por pessoa. A água é distribuída para cada residência e consumida por acesso individual, ou seja, cada um bebe a sua respectiva porção em uma torneira acionada por meio digital que identifica o indivíduo. Já falei que temos registro de DNA quando nascemos e esse registro é também nossa senha de acesso a todos os serviços públicos disponíveis.
Já o alimento é plantado em locais adequados, processado em fábricas próprias para isso e distribuído em postos instalados por setores habitacionais. A gente vai lá e pega uma vez por semana a comida que temos que consumir diariamente.
É uma alimentação saudável e balanceada de nutrientes, um processo resultante de anos de aperfeiçoamento de produção alimentar. A gente pode escolher o cardápio dentro de uma lista de cardápios que contêm todos os nutrientes com ingredientes diferentes. A comida é feita em tabletes com sabor e texturas diferenciados de acordo com o alimento processado.
Meu avô e minha avó disseram que os pais deles demoraram a se acostumar com esse sistema de alimentação pronta. Estavam acostumados com outra forma de alimentação. Eles compravam frutas, verduras e folhas em lojas, ou plantavam no solo de suas residências. Até que chegou um dia em que a poluição do ar e o desgaste do solo tornaram-se letais para os seres vivos. Foi quando os governantes da época colocaram em prática as técnicas de processamento de alimentos que vinham sendo estudadas e testadas em pequena escala.
Minha avó disse que a mãe dela só achava bom porque o novo processo acabou com a obesidade e outras doenças que atingiam grande parte da população. Ela mesma ficou curada de uma doença que existia chamada diabetes.
No começo do processo os governantes inventavam pequenos brindes para a população, como sortear uma fruta por setor residencial para as pessoas saciarem um pouco do passado. Depois de alguns meses isso foi encerrado e todos tinham a nova alimentação como única forma de sustento. Foi um tempo difícil, me contaram meus avós, porque até a mobilidade das pessoas foi restringida. Havia setores tão poluídos onde era proibido entrar e até passar por perto. Para minimizar os efeitos da situação, criaram setores purificados, cobertos por uma abóbada de material transparente, climatizada e com ar puro, enquanto tratavam de purificar o exterior. Os países que dividiam o mundo na época se ajudavam, me explicou ainda meu avô, mas a mortalidade foi imensa.
Assim que tudo parecia estável os pais dos meus avós, assim como grande parte da população ainda saudável, empreenderam a longa caminhada que os levou à criação de um mundo novo, acompanhados de outras pessoas que tinham a mesma consciência. Conseguiram solo e ar puros e voltaram a comer alimento plantado no solo. Criaram os filhos nesse sistema até uma certa idade, até que o controle de alimentos voltou a ser adotado porque não havia mais fertilidade do solo suficiente para alimentar a todos. A população mundial estava reduzida à metade da que havia no tempo dos pais e dos avós dos meus avós, mas o solo e o ar estavam muito esgotados para atender a todos. A geração dos meus avós desenvolveu novas tecnologias de alimentação e adotou o novo sistema.

10 fevereiro 2017

Veículo automóvel

Eu estava na rua com meu avô quando encostaram dois veículos perto de nós. Pararam, desligaram os motores e desceram ao nível da rua. Meu avô enrugou os olhos como costumava fazer para enxergar mais longe e identificou dois amigos que pararam para cumprimentá-lo. Parecidos com ele, os dois senhores bem idosos conversaram um pouco com meu avô e foram embora nos veículos, que transportavam mais duas pessoas e rapidamente sumiram no horizonte. Eram poucos os veículos transitando. Eles só eram usados quando havia necessidade de locomoção de longa distância ou com urgência. Eram de propriedade do governo local e sempre que algum cidadão precisasse podia requisitar um, desde que justificasse a necessidade.
Depois de ver os amigos se afastarem e me explicar que eles estavam indo visitar uns parentes em outras cidades, meu avô ficou pensativo, olhando para a direção dos veículos e começou a se lembrar do que sua mãe contava sobre os veículos de sua época e da época da mãe dela. Pra começar eram muitos, porque praticamente cada cidadão era proprietário de um. E eles andavam no chão, com quatro rodas de borracha e com combustível feito de petróleo, que poluía o ar de todas as cidades. Às vezes, conforme narrava a avó do meu avô, eram tantos os carros em uma mesma via que eles demoravam pra sair do lugar e ficavam ali, um atrás do outro, por muito tempo, até horas. As pessoas usavam os veículos para quase tudo e por isso eles se amontoavam nos mesmos lugares e liberavam poluentes em grande quantidade pelos caminhos que passavam. Pela dificuldade de locomoção, as pessoas perdiam muito tempo no trânsito, ficavam irritadas, nervosas e costumavam dirigir em velocidade muito alta para o tipo de veículo que possuíam. Isso geralmente causava acidentes e até mortes, pois os automóveis, como eram chamados os veículos, eram feitos de material frágil que amassava sempre que um deles se chocava com outro. Meu avô disse que uma tia dele morreu assim, em um acidente dentro de um veículo.
Não consigo imaginar uma via cheia de veículos amontoados e frágeis, sem espaço para a locomoção e ainda ficando presos ao solo. Os veículos hoje são feitos para servir; são eletrônicos como qualquer outro aparelho, que ligados têm uma função específica e só isso. São autômatos e geralmente só atendem a comandos pré-fixados, saindo de um lugar e parando no outro para o qual foram programados. Alguns veículos, como os que conduziam os amigos do meu avô, permitem alteração dos comandos, por isso eles conseguiram parar para cumprimentar o amigo. Existe um serviço central que organiza o trânsito e programa os roteiros de locomoção, e esse setor tem total conhecimento da localização de cada veículo.
Perguntei para meu avô por que as pessoas eram proprietárias de um veículo e como faziam para guardá-los, mas ele não soube me responder. E ele ficou imaginando uma multidão com seus veículos sem que os governos locais tivessem conhecimento para onde cada um estava indo, pois soube que os automóveis não eram facilmente rastreados e os proprietários não precisavam informar sobre suas localizações. A identificação de cada um e de seus veículos era feita por meio de documentos em papel atualizados periodicamente, me explicou ainda com base no que foi narrado a ele pelos avós.
- E por que se chamavam automóveis? Eles já eram como os de hoje? , perguntei para meu avô. Aí ele me contou que teve a mesma curiosidade e fez uma pesquisa sobre isso. Soube que receberam esse nome porque rodavam no chão, sem a necessidade de passarem sobre umas barras de metal que veículos mais antigos usavam para se deslocarem nas vias e, principalmente, porque tinham o próprio combustível. Mesmo sendo mais avançados que os outros daqueles tempos, precisavam ser dirigidos por alguém que acionava todos os comandos e tomava conta deles até chegar ao destino e desligar o veículo. E até os automóveis com alguns comandos já automatizados precisavam de uma pessoa para dirigi-los, explicou meu avô.

12 janeiro 2017

Geração bambu

Quando Mino nasceu, sua avó Pita e seu avô Luno tinham 102 anos. Viveram ainda mais 50 anos, quando abriram mão das técnicas de prolongamento de vida que haviam adotado. Foram eles que apresentaram o pequeno Mino ao mundo do passado sombrio que haviam presenciado até por volta de seus 15 anos, quando o mundo quase que literalmente explodiu, as pessoas passaram a vivenciar um cenário de barbárie e depredação, de doenças e carência de alimento e principalmente de água. Eles se conheceram em um momento de fuga dessa situação, quando suas famílias procuravam um local onde fosse possível sobreviver.
Naquela época, por volta do ano de 2080, tanto o meio urbano quanto o rural estavam deteriorados materialmente e seus habitantes careciam de ética, compaixão, segurança, confiança de todas as formas. A humanidade havia chegado a um estágio de evolução tecnológica que proporcionava todo tipo de comunicação interpessoal, de corporações, de governos, mas o comportamento moral e humano em geral estava comprometido e subordinado a uma espécie de lei do mais forte, do mais esperto, do mais audacioso dos seres.
Foi para fugir dessas condições que algumas famílias iniciaram uma caminhada praticamente sem rumo em busca de melhores condições de vida. Saíram das cidades onde viviam, numa espécie de êxodo seguido pela intuição. Não combinavam nada com ninguém, simplesmente saíam e eram seguidos por outras pessoas em busca da mesma paz. Ninguém sabe quem começou a caminhada. Não havia líder, não havia planos nem mapas. Só seguiram em frente até encontrarem um descampado árido, onde abriram suas barracas, colocaram seus pertences e suas famílias e começaram a conversar.
Descobriram um rio fino ali por perto; alguns traziam sementes; outros, pequenas tecnologias. Plantaram, puxaram água, colheram, ergueram habitações, alimentaram-se, purificaram a água, fizeram comida, foram erguendo um novo mundo para seus filhos.
Os filhos cresceram nesse sonho e foram alimentados de esperança de dias melhores. Pita e Luno ajudaram os pais nessa empreitada. Faziam tudo que os adultos faziam e aprenderam a sobreviver como todos os outros. Viram tudo mudar e crescer, depois de terem presenciado a depredação do meio em que vivam. Os pais seguiram o ciclo da vida até que só os filhos ficaram. Adultos, criavam outras crianças e jovens, e juntos fizeram florescer um mundo moderno e civilizado que deu origem ao mundo vivido por Mino. Todos os valores materiais e espirituais foram renovados. Toda a tecnologia foi renovada e empregada para o bem comum. A evolução da ciência e da consciência gerou um novo ser humano, que foi se revelando em todos os continentes.
- Parecia que éramos bambus, disse o avô, explicando a Mino que mesmo sem comunicação, todos os grupos sobreviventes desenvolveram os mesmos métodos e princípios em todos os cantos do Planeta, da mesma forma como se desenvolvem os bambus plantados a quilômetros de distância uns dos outros.

10 janeiro 2016

Quero ir pra escola!

Tive vontade de saber como seria frequentar uma escola do tempo da minha avó. Ela me contou que ainda pequena saía de casa e era deixada em uma escola com crianças da mesma faixa etária. Os mais velhos ficavam em outra instituição. Mas a geração dela foi a última a ir para uma escola. A partir da sua irmã, que nasceu dois anos depois, os recém-nascidos passaram a receber toda informação e aprendizado escolar em arquivos compactados inseridos no sistema nervoso por meio de chips. Os responsáveis pela criança ficavam encarregados de ir liberando as informações de acordo com a programação do sistema de ensino.
Desde que minha avó me contou que saía de casa para ir a uma escola fiquei imaginando como seria isso. Ela disse que as crianças eram distribuídas em várias salas e que havia pessoas adultas que transmitiam todas as informações escolares. Eram professoras e professores que sabiam mais que as crianças e ensinavam vários assuntos, da matemática às línguas faladas na época. Eram muitas crianças em cada sala, que nos intervalos do ensino saíam para brincar em um pátio interno. Depois voltavam para a sala para continuar o aprendizado.
Ela passava na escola mais da metade do dia. Ia de manhã cedinho e retornava no final da tarde, cheia de histórias para contar. Conhecia muitos meninos e muitas meninas e com eles às vezes fazia passeios fora da cidade. Alguns desses colegas minha avó conservou como amigos pelo resto de sua vida e, com certeza, eles também contam suas experiências para seus netos.
Se eu fosse para uma escola ia querer conversar com o adulto que ensina as crianças. Ele ou ela deve ter bastante conhecimento para transmitir. Minha avó disse que o melhor de tudo era brincar com os colegas. Ela só conversava com o professor se fosse necessário. Ela lembra que eles eram rigorosos com a disciplina e não gostavam muito de conversar com as crianças se não fosse sobre o assunto tratado no ensino.
Naquele momento minha mãe me alertou que estava na hora de eu me concentrar na nova carga de informações que seriam liberadas. Era minha escola e eu tinha que esquecer um pouco o sonho de frequentar uma instituição como as de minha avó.

06 janeiro 2016

Um pato lá em casa

Resolvi requerer para a coordenadoria de serviços de saúde um animal de estimação. Peguei esse termo emprestado nas histórias contadas por minha avó sobre a mãe dela. Em algumas de suas múltiplas e inúmeras recordações, ela contou que minha bisavó tinha um cãozinho, que nasceu e morreu junto dela, e que era um amigo, e que além dele houve outros cães e gatos na família. Fiquei imaginando como seria criar um animal em casa, que não fala a nossa língua, que tem necessidades diferentes das nossas, que tem um período de vida bem encurtado, que depende de um humano para muita coisa. Não conseguia imaginar como que um animal poderia ser um amigo de um de nós. Mas pode ser que estivesse agindo como todos os adolescentes de outras eras. Segundo minha avó foi informada, em geral as crianças e os adolescentes da época da mãe dela pediam um animal para os pais, que acabavam sendo responsáveis por eles, assim como eram com os próprios filhos.
Falei para minha mãe da minha vontade. Ela me olhou com uma interrogação no meio da testa, como se estivesse duvidando de minha vontade. Questionou meu desejo e foi logo avisando que não ficaria responsável pelo animal, informação que ela teve também com minha avó. Conversamos sobre o assunto e deixei claro que eu seria o responsável por tudo, pois eu iria até o setor de adoção dos animais e lá me responsabilizaria por ele.
No dia seguinte me dirigi ao local de criação de animais. É um imenso prédio onde funciona um laboratório de testes com animais de todas as espécies. Lá eles reproduzem artificialmente alguns exemplares. Hoje a gente não come mais carne de animal, como comiam no tempo da minha bisavó. Naquela época, os produtos animais eram consumidos por humanos, geralmente de bovinos, suínos, galinhas e similares. Também não é mais um hábito a interação entre humanos e animais, como já houve em outras épocas (havia até locais de confinamento e exposição de animais de várias espécies, que eram chamados de zoológicos). A proximidade de humanos e animais resultou, segundo pesquisa que fiz, em disseminação de doenças transmitidas pelos bichos e eles passaram a ser exterminados para preservar os humanos. Os animais passaram a ser objetos de estudo, em função da preservação da saúde do ser humano e da produção de alimentos. Aos poucos, os pesquisadores e governantes admitiram a convivência limitada e controlada de algumas espécies consideradas domésticas. Foi com base nisso que resolvi ter meu bichinho de estimação.
Quando cheguei ao setor de adoção fui logo identificado e interrogado sobre minha visita. Depois de requerer meu animalzinho (já estava me acostumando com nossa relação) e manifestar minha vontade de ter um cão ou um gato, fiquei sabendo que não poderia escolher a espécie. Fiquei preocupado e imaginando sair de lá com uma cobra, um porco, um avestruz. Porém, após ter requerido passava a ser obrigação sair de lá com um animal.
Foi um aprendizado essa minha decisão. Fiquei sabendo que muita gente requer um animal para criar em casa, embora não soubesse de ninguém nessa situação. Não ouvia latidos, miados; não via animais nas janelas e nas calçadas; não tinha amigos com animais em casa. Mesmo assim, o encarregado me informou que por causa da grande demanda, não havia cães e gatos disponíveis, nem coelhos ou pássaros. Havia aves maiores, bem como mamíferos grandes, que não estavam disponíveis para adoção. Então ele escolheu o meu animalzinho de estimação que trouxe dentro de uma caixa cheia de buracos. Ao colocar sobre o balcão, vi por um dos buracos da caixa um bico de pássaro, escuro, largo, e do outro lado penas cinzas, brancas e pretas. Um pato, disse o funcionário do laboratório. Um pato enorme, adulto, já incomodado com a caixa em volta dele. Em volta dele, havia dois filhotes, com penas ainda amareladas, bem bonitinhos. Fiquei assustado ao pensar que teria de levar todos para casa, mas o rapaz me tranquilizou dizendo que eu poderia escolher um dos três.
Com um animalzinho de penas amareladas, dentro de uma caixa de metal pequena, saí de lá feliz por ter meu primeiro animalzinho de estimação. Colado na caixa, um chip com as regras para a criação do pato, normas comuns a todos os animais. Primeira regra: manter sigilo sobre o animal. Comecei a entender por que não conhecia outros animais em qualquer lugar. Segunda regra: controlar o animal por meio de um aparelho que fazia parte do kit e que emitia sinais sonoros com informações para o animal, inclusive, e principalmente, relativas ao comportamento.
Se o animal emitisse um som - latido, miado, quá-quá - era preciso tocar o aparelho para que ele ficasse calado. Pular, correr, brincar só em horas marcadas antecipadamente pelo laboratório. Olhei para o meu pato e fiquei triste por ele. Na verdade nós humanos também temos nossas limitações legais, mas os animais eram muito controlados. Meu patinho começou a fazer um piado de pato e eu deixei que se manifestasse, embora ainda estivesse na via pública. Ao chegar em casa, abri a caixa e deixei que andasse pelos cômodos. Ele me pareceu feliz, andando desengonçado para todo lado e começando a deixar pelo chão suas necessidades fisiológicas. Levou um susto quando o aspirador identificou a sujeira e veio rápido limpar.
Há uma semana estou com meu patinho em casa. Contei para minha avó e ela me disse que nunca na família alguém criou patos dentro de um apartamento. Seria o primeiro então, com meu animalzinho solto pelos cômodos, com o aspirador sempre atrás dele, grasnando o dia inteiro, soltando penas amarelinhas que aos poucos vão escurecendo.

02 janeiro 2014

Papel na rua

Meu amigo foi repreendido pelo zelador do nosso setor por ter deixado cair um pedaço de papel na rua. Ele declarou que não viu quando o papel caiu da sacola que ele carregava e só não foi detido porque sua declaração foi confirmada pelos investigadores e considerada verdadeira. Estava ali a conversar com ele e me lembrei do que minha avó me contava sobre o que ocorria com episódios semelhantes que aconteciam na sua época. As cidades eram muito sujas, segundo ela informou, porque em geral as pessoas não se importavam em largar em qualquer lugar os restos daquilo de utilizavam. Pedaços de papel e outras coisas existiam em abundância pelas ruas e calçadas. Minha avó relatava que até móveis e outros objetos de tamanho grande eram largados pelas pessoas em áreas públicas. Algumas cidades adotavam leis para punir os cidadãos que largassem sujeira pelas vias públicas, mas muitos preferiam pagar as taxas de punição a ter de assumir como hábito usar recipientes que eram chamados de lixeira para depositar os restos do seu consumo. E os sujões só eram identificados se fossem vistos jogando seus restos pelo caminho. Se não fossem vistos nunca seriam punidos. Comentei isso com meu amigo e ele ficou surpreso. Ele não tinha avós nem os pais dos seus avós, porque morreram antes de poderem ser beneficiados com as técnicas de prolongamento da vida.
- É sério mesmo. Minha avó me conta muito coisa do tempo em que era menina, ou até de antes, porque a mãe dela também se lembrava de coisas semelhantes.
Expliquei para meu amigo que naquele tempo não havia identificação do DNA espontaneamente. Só era feito o reconhecimento do DNA se isso fosse requerido pela Justiça, ou se a própria pessoa pedisse e pagasse um teste para conhecer sua identidade genética. Na verdade, segundo me informou o meu avô, o DNA era usado como material de prova da paternidade de alguém, em inquéritos da polícia, para identificar se um acusado era autor ou não era autor de um determinado crime. Quando ele me contou isso fiquei muito confuso, porque me pareceu que o DNA estava então sendo usado para fins negativos, como se fosse uma parte de nós atrelada a um crime. Abri um arquivo no meu computador e mostrei para meu amigo o período em que o DNA fora adotado para esses fins: nos anos de 1950 até por volta de 2020.
Só depois desse período a identificação do DNA passou a ser um direito de todo cidadão e uma lei determinou que o teste fosse incorporado ao conjunto de procedimentos adotados com o recém-nascido. Com isso também foi abolido um papel identificado como certidão de nascimento, que continha informações como nome, hora e data do nascimento, nomes de pai, mãe, avôs e avós.
Com o registro obrigatório de todo cidadão, também se ampliou a possibilidade de coibir a criminalidade que sempre houve em todas as cidades. Se antes era preciso colher material para identificar um criminoso na hora em que era detido, agora todos eles já traziam como identidade seu código genético, que constava em bancos de dados. Pelo que pesquisei depois que meu avô me informou, passaram-se algumas décadas até que a tecnologia avançasse ao ponto de ser possível saber quem jogou um pedaço de papel na rua, ou quem tocou na escada que levava ao local de um crime, ou quem acariciou o cachorro do vizinho.
Não foi necessária muita pesquisa para levar a essa realidade, pois havia ferramenta suficiente para adotar essa forma de identificação. Um dia os cientistas perceberam que podia ser usado um scanner com um leitor digital, com acesso ao banco de dados das identificações genéticas, e seria possível reconhecer o DNA em qualquer lugar. Minha avó dizia que no tempo dela o que havia de mais avançado e parecido com isso era o leitor de código de barras, que facilitava a identificação de objetos e documentos.
Por isso tudo é que meu amigo foi identificado e logo em seguida liberado, porque além do leitor de DNA os investigadores contam com um equipamento que identifica as alterações emitidas pelo cérebro do indivíduo e ficam sabendo se a pessoa mente ou diz a verdade. Meu amigo afirmou que não havia visto o papel cair da sacola que carregava e sua declaração foi confirmada. Foi repreendido, mas não ficou detido.
Meus avós ainda se surpreendem com a limpeza das ruas das nossas cidades e, mais ainda, com as técnicas usadas para a manutenção desta e de outras limpezas.

31 dezembro 2013

Ano Novo

Havia fogos coloridos para todo lado. Algumas pessoas se machucavam, mas todos se divertiam. Com essa prática, as pessoas da maioria dos países festejavam a passagem de um ano para outro. Meu avô me contou que esses fogos já eram usados, em relação à época de seus pais, há mais de dois mil anos, em festas na China.
Foram sendo modificados em outros países, com a descoberta de novas combinações químicas para aumentar o efeito de luzes e som. Até que foram proibidos por conterem agentes poluidores do meio ambiente, além de causarem uma série de acidentes. Os fogos de artifícios do tempo dos pais dos meus avós, segundo me contaram, aumentavam a emissão de gás carbônico na atmosfera, liberavam substâncias tóxicas, provocavam incêndios, alteravam a rotina de muitos animais por causa da intensidade do som.
Meus avós se lembram ainda de festas com fogos de artifício do tempo em que eram crianças. Eles eram usados em festas folclóricas, nas passagens de ano, em festas de família e muitas outras ocasiões. Perguntei se continuaram e como faziam os festejos depois que os fogos foram proibidos. Eles disseram que havia projeções holográficas de cores e luzes, com som, que eram melhores de noite e principalmente em noites nubladas. No início, o som que acompanhava as luzes imitava o barulho dos fogos de artifício, até ser substituído por músicas.
Hoje, na passagem de ano, depois que cheguei da escola, meus avós me contaram que naquele tempo essas datas eram feriados. Não se trabalhava, nem se estudava, nada. Aliás, feriado é outra coisa que foi abolida com o passar dos anos e séculos. Hoje todo dia é dia de se fazer tudo. A gente descansa durante o dia, trabalha e estuda, mas não existe um dia para não fazer nada. Festejamos as datas importantes sem deixar de fazer o que fazemos todos os dias. O calendário foi preservado na forma que existia no tempo dos avós dos meus avós, mas o último dia do ano e o primeiro do outro não têm distinção. São dias como são todos os outros dias, porque temos muito que fazer para manter a vida.