02 janeiro 2014

Papel na rua

Meu amigo foi repreendido pelo zelador do nosso setor por ter deixado cair um pedaço de papel na rua. Ele declarou que não viu quando o papel caiu da sacola que ele carregava e só não foi detido porque sua declaração foi confirmada pelos investigadores e considerada verdadeira. Estava ali a conversar com ele e me lembrei do que minha avó me contava sobre o que ocorria com episódios semelhantes que aconteciam na sua época. As cidades eram muito sujas, segundo ela informou, porque em geral as pessoas não se importavam em largar em qualquer lugar os restos daquilo de utilizavam. Pedaços de papel e outras coisas existiam em abundância pelas ruas e calçadas. Minha avó relatava que até móveis e outros objetos de tamanho grande eram largados pelas pessoas em áreas públicas. Algumas cidades adotavam leis para punir os cidadãos que largassem sujeira pelas vias públicas, mas muitos preferiam pagar as taxas de punição a ter de assumir como hábito usar recipientes que eram chamados de lixeira para depositar os restos do seu consumo. E os sujões só eram identificados se fossem vistos jogando seus restos pelo caminho. Se não fossem vistos nunca seriam punidos. Comentei isso com meu amigo e ele ficou surpreso. Ele não tinha avós nem os pais dos seus avós, porque morreram antes de poderem ser beneficiados com as técnicas de prolongamento da vida.
- É sério mesmo. Minha avó me conta muito coisa do tempo em que era menina, ou até de antes, porque a mãe dela também se lembrava de coisas semelhantes.
Expliquei para meu amigo que naquele tempo não havia identificação do DNA espontaneamente. Só era feito o reconhecimento do DNA se isso fosse requerido pela Justiça, ou se a própria pessoa pedisse e pagasse um teste para conhecer sua identidade genética. Na verdade, segundo me informou o meu avô, o DNA era usado como material de prova da paternidade de alguém, em inquéritos da polícia, para identificar se um acusado era autor ou não era autor de um determinado crime. Quando ele me contou isso fiquei muito confuso, porque me pareceu que o DNA estava então sendo usado para fins negativos, como se fosse uma parte de nós atrelada a um crime. Abri um arquivo no meu computador e mostrei para meu amigo o período em que o DNA fora adotado para esses fins: nos anos de 1950 até por volta de 2020.
Só depois desse período a identificação do DNA passou a ser um direito de todo cidadão e uma lei determinou que o teste fosse incorporado ao conjunto de procedimentos adotados com o recém-nascido. Com isso também foi abolido um papel identificado como certidão de nascimento, que continha informações como nome, hora e data do nascimento, nomes de pai, mãe, avôs e avós.
Com o registro obrigatório de todo cidadão, também se ampliou a possibilidade de coibir a criminalidade que sempre houve em todas as cidades. Se antes era preciso colher material para identificar um criminoso na hora em que era detido, agora todos eles já traziam como identidade seu código genético, que constava em bancos de dados. Pelo que pesquisei depois que meu avô me informou, passaram-se algumas décadas até que a tecnologia avançasse ao ponto de ser possível saber quem jogou um pedaço de papel na rua, ou quem tocou na escada que levava ao local de um crime, ou quem acariciou o cachorro do vizinho.
Não foi necessária muita pesquisa para levar a essa realidade, pois havia ferramenta suficiente para adotar essa forma de identificação. Um dia os cientistas perceberam que podia ser usado um scanner com um leitor digital, com acesso ao banco de dados das identificações genéticas, e seria possível reconhecer o DNA em qualquer lugar. Minha avó dizia que no tempo dela o que havia de mais avançado e parecido com isso era o leitor de código de barras, que facilitava a identificação de objetos e documentos.
Por isso tudo é que meu amigo foi identificado e logo em seguida liberado, porque além do leitor de DNA os investigadores contam com um equipamento que identifica as alterações emitidas pelo cérebro do indivíduo e ficam sabendo se a pessoa mente ou diz a verdade. Meu amigo afirmou que não havia visto o papel cair da sacola que carregava e sua declaração foi confirmada. Foi repreendido, mas não ficou detido.
Meus avós ainda se surpreendem com a limpeza das ruas das nossas cidades e, mais ainda, com as técnicas usadas para a manutenção desta e de outras limpezas.